quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

CURANDO AS ALMAS : A ARTE ESQUECIDA - parte 1

No desafio de liderar uma igreja, algo de essencial foi ignorado.

Pode haver uma reforma em andamento na maneira como os pastores realizam o seu trabalho. Ela pode revelar-se tão significativa quanto a reforma teológica do século XVI. Espero que sim. Os sinais não param de se acumular.

Os reformadores recuperaram a doutrina bíblica da justificação pela fé. A proclamação - fresca, pessoal e direta – do evangelho, através dos séculos, tornou-se uma imensa e pesada engrenagem: mecanismos teológicos elaboradamente planejados, roldanas, niveladores produzindo ruído com seu atrito para, no final, resultar em algo completamente trivial. Os reformadores recuperaram a paixão pessoal e a clareza tão evidentes nas Escrituras. Esta redescoberta do envolvimento íntimo resultou em frescor e vigor.

A reforma vocacional do nosso próprio tempo (caso se trate disso) é uma redescoberta do trabalho pastoral de curar almas. A frase soa antiga, o que ela é de fato. Mas não obsoleta. Ela designa, melhor do que qualquer outra expressão de que eu tenha conhecimento, por um lado o combate incessante contra o pecado e a tristeza, e, por outro, o cultivo dedicado da graça e da fé ao qual os melhores pastores têm se consagrado a cada geração. A sonoridade esquisita da frase pode até apresentar uma vantagem: chamar a atenção para o fato de quão distantes as rotinas pastorais da atualidade se tornaram.

Eu não sou o único pastor que descobriu esta antiga identidade. Mais e mais pastores estão abraçando esta forma de trabalho pastoral e considerando-a um caminho legítimo. Não somos muitos e não somos maioria. E tampouco somos uma minoria destacada. Mas, um a um, os pastores estão rejeitando o pedido de trabalho que lhes foi entregue e preferindo este novo – ou, como parece ser o caso, o antigo que tem sido usado durante quase todos os séculos cristãos.

Não é só fantasia pensar numa época em que os números alcançarão uma massa crítica e produzirão uma reforma vocacional dentre os pastores. Mesmo em caso negativo, me parece a coisa mais significativa e criativa acontecendo no ministério pastoral dos dias de hoje.

O trabalho da semana - O que os pastores fazem no domingo é diferente do que eles fazem entre os domingos. Aquilo que fazemos nos domingos não mudou muito ao longo dos séculos: proclamar o evangelho, ensinar as Escrituras, celebrar os sacramentos, oferecer preces. O trabalho entre um domingo e outro, por sua vez, mudou radicalmente, e não no sentido de um progresso, mas de uma deserção.

Até mais ou menos um século atrás, o que os pastores faziam entre os domingos consistia em uma parte daquilo que eles faziam aos domingos. O contexto mudou: ao invés de uma congregação reunida, o pastor se reunia com uma pessoa ou com um pequeno grupo, ou fazia seus estudos e orações até mesmo sozinho. A maneira mudou: no lugar da proclamação, era a conversa. Mas o trabalho era o mesmo: descobrir o significado das Escrituras, desenvolver uma vida de oração com o objetivo de orientar o crescimento em direção à maturidade.

Este é o trabalho pastoral que foi historicamente definido como a cura das almas. O sentido básico de “cura” em latim é “cuidado”. A alma é a essência da personalidade humana. Neste sentido, a cura das almas consiste, pois, no cuidado orientado pelas Escrituras e modelado pela oração, e voltado a indivíduos ou grupos, seja em contextos sagrados ou profanos. Trata-se, pois, da determinação de se trabalhar o centro, de se concentrar sobre o essencial.

O trabalho entre domingos dos pastores norte-americanos neste século, entretanto, é administrar uma igreja. Ouvi esta frase pela primeira vez durante minha ordenação. Após 25 anos, ainda consigo lembrar a impressão desagradável que ela deixou em mim.

Eu viajava em companhia de um pastor pelo qual tinha muito respeito. Eu estava cheio de entusiasmo e expectativas, antecipando minha vida pastoral. Minha convicção interior da chamada ao pastoreio estava prestes a ser confirmada por outras pessoas. O que Deus desejava que eu fizesse, o que eu queria fazer e o que os outros queriam que eu fizesse estavam em ponto de convergência. A partir de uma leitura razoavelmente extensa de pastores e padres do passado, eu me impressionava com o fato de que a vida pastoral tinha como preocupação primeira o desenvolvimento de uma vida de oração entre as pessoas. Liderar a devoção, pregar o evangelho e ensinar as Escrituras aos domingos desenvolveria, nos seis dias seguintes, a representação da vida de Cristo durante o trânsito humano do dia-a-dia.

Enquanto minha mente estava repleta destes pensamentos, meu amigo pastor e eu paramos em um posto de gasolina. Ele, uma pessoa gregária, discutiu com o frentista. Algo relacionado ao troco provocou a discussão.

“O que você faz?”

“Eu lidero uma igreja”.

Nenhuma resposta teria me surpreendido mais. Eu sabia, claro, que a vida pastoral incluía responsabilidades institucionais, mas nunca me ocorrera que eu viria a ser definido por tais responsabilidades. Mas no momento em que fui ordenado, descobri que eu era definido tanto pelos pastores e executivos ao redor quanto pelos paroquianos em volta de mim. A primeira tarefa submetida a mim omitia completamente a oração.

Enquanto minha identidade pastoral estava sendo moldada por Gregório e Bernardo, Lutero e Calvino, Richard Baxter de Kidderminster e Nicolau Ferrara de Little Gidding, George Herbert e Jonathan Edwards, John Henry Newman e Alexander Whyte, Phillips Brooks e George MacDonald, o trabalho pastoral havia sido quase completamente secularizado (exceto os domingos). Eu não gostava disso e decidira, após um período de confusão, em que me encontrava desorientado, que ser um médico de almas era mais importante do que administrar uma igreja, e que eu seria orientado em minha vocação pastoral pelos sábios predecessores e não pelos meus contemporâneos. Felizmente, encontrei aliados ao longo do caminho e a prontidão dos meus paroquianos para me ajudar a aperfeiçoar minhas tarefas pastorais.

Cumpre esclarecer que a cura das almas não é uma forma especializada de ministério (análoga, por exemplo, ao capelão de hospital ou ao conselheiro pastoral), mas a atividade pastoral por excelência. Não se trata de um estreitamento da atividade pastoral em direção aos seus aspectos devocionais, mas um modo de vida que recorre às tarefas, encontros e situações do dia-a-dia como matéria-prima do ensinamento da oração, do desenvolvimento da fé e da preparação para a morte. Curar almas é um termo que filtra aquilo que é introduzido pela cultura secular. Também é um termo que nos identifica aos nossos ancestrais e aos nossos colegas de ministério, leigos e clérigos, que estão convencidos de que uma vida de oração é o tecido de ligação entre a proclamação do dia santo e o discipulado do dia-a-dia.

Um aviso: eu costumo distinguir a cura de almas da tarefa de administrar uma igreja, mas não quero ser mal compreendido. Não me orgulho de liderar uma igreja, assim como não desprezo a importância da tarefa. Eu mesmo administro uma há mais de 20 anos. Tento fazer o meu melhor.

Eu encaro a tarefa da mesma maneira com que cuido da casa junto à minha esposa. Existem muitas coisas que fazemos cotidianamente, muitas vezes (mas nem sempre) com prazer. Mas nós não administramos uma casa; o que fazemos é construir um lar, desenvolver um matrimônio, educar as crianças, praticar a hospitalidade, exercitar uma vida de trabalho e lazer. É à redução da vida pastoral a tarefas institucionais que eu me oponho, não às tarefas em si, que eu orgulhosamente compartilho com outras pessoas na igreja.

Não será o caso, obviamente, de desafiar teimosamente as expectativas das pessoas e levar adiante de maneira excêntrica o labor pastoral, como uma cura do século XVII, ainda que aquela cura pudesse ser de longe mais sensata do que o clérigo atual. O resgate deste trabalho pastoral essencial entre domingos deve ser empreendido em tensão com as expectativas secularizadas da nossa época: deve haver negociação, discussão, experimentação, confronto, adaptação. Os pastores que se dedicam à direção de almas devem realizar a tarefa no meio das pessoas que esperam que eles cuidem de uma igreja. Numa tensão determinada e afável com aqueles que nos prescrevem irrefletidamente orientações de tarefas, podemos, estou convencido disso, recuperar nosso trabalho próprio.

Não obstante, os pastores que reivindicam o vasto território da alma como sua responsabilidade preeminente, não o conseguirão indo fazer um treinamento profissional. Temos de aprender na prática, em nossa própria profissão, pois não somos apenas nós mesmos, mas também o nosso povo que estamos desecularizando. A tarefa da recuperação vocacional é uma reforma tão teológica quanto interminável. Os detalhes variam conforme o pastor e o pároco, mas existem três áreas de contraste entre cuidar de uma igreja e a cura de almas com a qual estamos familiarizados: iniciativa, linguagem e problemas.

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